Reviravolta na Antinha de Baixo: Direitos quilombolas confrontam títulos de fazendeiros
Uma disputa de terras complexa e cheia de controvérsias está em foco na comunidade de Antinha de Baixo, localizada em Santo Antônio do Descoberto, Goiás. De um lado, produtores rurais alegam ser os legítimos proprietários de uma extensa área de 1,5 mil hectares, com base em registros que remontam à década de 1940. De outro, famílias se identificam como remanescentes de quilombos, afirmando uma presença ancestral de pelo menos 200 anos na região, o que gerou uma situação de insegurança e incerteza sobre o futuro da área.
O Cenário da Disputa
A defesa dos produtores rurais, representada pelo advogado Eduardo Caiado, tem sido vocal em suas críticas à investigação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) sobre a possível presença quilombola. Caiado argumenta que os proprietários legítimos foram transformados em “grileiros”, enquanto supostos invasores, que teriam realizado “loteamento clandestino” e vendido dezenas de chácaras de lazer nos últimos cinco anos, agora se autodenominam “quilombolas”. Ele representa os espólios de Raul Alves de Andrade Coelho, Luiz Soares de Araújo e de Maria Paulina Boss, que alegam serem os proprietários históricos. Em contraste, famílias que se reconhecem como quilombolas, já com certificado de autodefinição emitido pela Fundação Palmares em 1º de agosto, defendem a permanência de seus antepassados na área por séculos. O agricultor Joaquim Moreira, de 86 anos, nascido e criado na comunidade, reforça essa versão, lembrando que seus pais e avós também viveram ali. Marcas do passado, como um cemitério, foram apresentadas em reportagem da Agência Brasil, reforçando a narrativa dos moradores que se identificam como população remanescente quilombola.
A Virada Legal
Uma decisão judicial favorável aos fazendeiros, que levou ao início da desocupação da área em julho, sofreu uma reviravolta significativa. Após a publicação do documento de autodeclaração quilombola pela Fundação Cultural Palmares, o Supremo Tribunal Federal (STF) remeteu o caso para a Justiça Federal. O advogado Eduardo Caiado criticou essa mudança, questionando como a autoidentificação de alguém como quilombola pôde, em sua visão, atrair o interesse do Incra tão rapidamente. Ele afirma ter pesquisado e não encontrado menção prévia de remanescentes de quilombos na região. Caiado aponta que a suspensão da desocupação e a remessa do processo à Justiça Federal ocorreram no mesmo dia em que o Incra se habilitou no processo, alegando interesse devido à autodeclaração feita 20 dias antes. Ele ainda sustenta que pesquisas em “inúmeros e antigos processos judiciais” não revelaram registros de ocupação da Fazenda Antinha de Baixo por descendentes de escravos, citando que Saturnino da Silva Moreira e a Família Pereira Braga, supostamente originários do quilombo, teriam comprado terras no local em 1957. Segundo Caiado, estaria sendo criada uma “narrativa” para suspender a decisão judicial.
Controvérsias e Acusações
Para Eduardo Caiado, a reviravolta no caso estaria ligada a “supostos interesses políticos”, envolvendo representantes de partidos de esquerda e o governo federal. Ele menciona que beneficiários da decisão seriam familiares do governador de Goiás, Ronaldo Caiado. O advogado detalha que o processo se arrastou por décadas devido a “medidas protelatórias”, mas que sentenças favoráveis aos seus clientes datam de 1990, com trânsito em julgado em 1994. Ele afirma que 11 proprietários tiveram seus títulos de domínio reconhecidos e áreas demarcadas. Há dez anos, ações de usucapião de outros produtores rurais foram arquivadas. Após intimações para desocupação voluntária, a juíza voltou atrás, suspendendo a ordem, à espera de mais um julgamento de usucapião, que ocorreu em 2021. Contudo, o advogado argumenta que houve vendas clandestinas e loteamento ilegal em chácaras de lazer. A juíza Ailime Virgínia Martins, em janeiro do ano passado, havia determinado desocupação voluntária, que foi suspensa em março para análise da Comissão de Soluções Fundiárias do TJ-GO, até nova determinação de desocupação, novamente suspensa pelo Supremo Tribunal Federal. Caiado finaliza sua carta à Agência Brasil, reforçando que a Fazenda Antinha de Baixo foi ilegalmente loteada em chácaras de lazer, com “condomínios clandestinos” surgindo da noite para o dia, sem licença para parcelamento do terreno em áreas menores que o módulo rural, o que configuraria crime.
A Perspectiva Quilombola e a Visão Acadêmica
Para entender a presença quilombola na região, o professor Manoel Barbosa Neres, da Universidade de Brasília (UnB), especialista no tema, explica que essas populações remanescentes surgiram no Centro-Oeste a partir do século 19, durante a exploração mineradora. Muitos se estabeleceram nas proximidades de Goiás e do Entorno do Distrito Federal, especialmente após ataques ao Quilombo do Ambrósio, em Minas Gerais. Ele menciona uma conexão histórica entre os quilombolas de Mesquita (Cidade Ocidental, Goiás) e as comunidades de Santo Antônio do Descoberto, sendo Antinha dos Pretos o primeiro povoado a ser investigado pelo Incra. O professor ressalta que é comum haver pressão e ameaças contra as equipes de antropologia do Incra durante suas investigações, citando o exemplo da antropóloga do Quilombo Mesquita. Ele pondera que a situação de pessoas que alegam viver há mais de 80 anos no local é consolidada, mas também reconhece casos onde as pessoas perderam suas terras, mas ainda mantêm o conhecimento de que elas lhes pertenciam. O trabalho antropológico, segundo Neres, busca identificar “marcas das pessoas”, como “reminiscências documentais”, além de “registros imateriais” como memórias, histórias contadas, vínculos de parentesco e formas de produção, que juntos constituem um “dossiê cultural”.
Visão Geral
A situação em Antinha de Baixo é um microcosmo das complexas questões fundiárias no Brasil, onde direitos de propriedade legalmente estabelecidos se chocam com reivindicações de comunidades tradicionais baseadas em ocupação histórica e ancestralidade. Este caso demonstra a delicada interseção entre o direito agrário, a legislação de proteção de comunidades quilombolas e a necessidade de comprovação histórica e antropológica. A atuação de diferentes esferas da justiça e de órgãos como Incra e Fundação Palmares, somada às fortes narrativas de ambos os lados, sublinha a dificuldade de se chegar a um consenso e a uma solução que contemple todas as partes envolvidas, mantendo a instabilidade e a expectativa sobre o futuro da comunidade.
Créditos: Misto Brasil